domingo, 26 de agosto de 2012

Arquétipos - Contos de Fadas e outras histórias



Um pouquinho de historinha infantil/adolescente com toda sua ingenuidade contada através de uma visão sem fantasias (ou seria muita?) dos adultos ao interpretar em toda delicadeza também formas menos sutis de procurar prazer egoísta e...prazer egoísta? existe outra forma de prazer? bem...controvérsias a parte, vamos para as histórias..rss..

O texto abaixo foi retirado do livro Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida, da autora Marilena Chauí, que foi impresso pela editora Brasiliense no ano de 1984. 
 

No Chapeuzinho Vermelho (que, na canção infantil, é dito “Chapeuzinho cor de fogo”, o fogo sendo um dos símbolos e uma das metáforas mais usados em nossa cultura para referir-se ao sexo), o lobo é mau, prepara-se para comer a menina ingênua que, muito novinha, o confunde com a vovó, precisando ser salva pelo caçador que, com um fuzil (na canção: “com tiro certo”), mata o animal agressor e a reconduz à casa da mamãe.
Há duas figuras masculinas antagônicas: o sedutor animalesco e perverso, que usa a boca (tanto para seduzir como para comer) e o salvador humano e bom, que usa o fuzil (tanto para caçar quanto para salvar). Há três figuras femininas: a mãe (ausente) que previne a filha dos perigos da floresta; a vovó (velha e doente) que nada pode fazer, e a menina (incauta) que se surpreende com o tamanho dos órgãos do lobo e, fascinada, cai em sua goela.
A sexualidade do lobo aparece não só como animalesca e destrutiva, mas também “infantilizada” ou oral, visto que pretende digerir a menina (o que poderia sugerir, de nossa parte, uma pequena reflexão sobre a gíria sexual brasileira no uso do verbo comer). O comer também aparece num outro conto de retorno, João e Maria. A curiosidade de João, depois acrescida pela gula diante da casa de confeitos, arrasta os irmãozinhos para a armadilha da bruxa (que é, na simbologia e mitologia da Europa medieval uma das figuras mais sexualizadas, possuída pelo demônio (o sexo), ou tendo feito um pacto com ele).
A astúcia salva as crianças quando João exibe o rabinho mole e fino de um camundongo no lugar do dedo grosso e duro (o pênis adulto), evitando a queda do menino no caldeirão fervente (outro símbolo europeu para o sexo feminino, tanto a vagina quanto o útero). Há tempo para que o pai surja e os reconduza à casa, depois de matar a bruxa. (A imagem do caldeirão fervente também aparece em O Casamento de Dona Baratinha, o noivo nele caindo, vítima da gula, não podendo consumar o casamento.)


 Nos contos de partida, a adolescência é atravessada submetida a provações e provas até ser ultrapassada rumo ao amor e à vida nova. Nesses contos, a adolescência é um período de feitiço, encantamento, sortilégio que tanto podem ser castigos merecidos quanto imerecidos, mas que servem de refúgio ou de proteção para a passagem da infância à idade adulta. É um período de espera: Gata Borralheira na cozinha, Branca de Neve semimorta no caixão de vidro, Bela Adormecida em sono profundo, Pele-de-Burro sob o disfarce repelente. Heróis e heroínas se escondem, se disfarçam, adoecem, adormecem, são metamorfoseados (como os príncipes nos Três Cisnes, a princesa em A Moura Torta, o príncipe em A Bela e a Fera, etc.).


Em geral, as meninas adormecem ou viram animaizinhos frágeis (pomba, corça) e os meninos adoecem, viram animais repugnantes (freqüentemente, sapos, o sapo sendo um dos companheiros simbólicos principais das bruxas) ou viram pássaros (o pássaro sendo considerado um símbolo para o órgão sexual masculino). A expressão, muito usada antigamente, “esperar pelo príncipe encantado” ou “pela princesa encantada” não queria dizer apenas a espera por alguém muito bom e belo, mas também a necessidade de aguardar os que estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento.


Gata Borralheira vai ao baile (primeiros jogos amorosos, como a dança dos insetos), mas não pode ficar até o fim (a relação sexual) sob pena de perder os encantamentos antes da hora. Deve retornar à casa, deixando o príncipe doente (de desejo), e com o par de sapatinhos momentaneamente desfeito, ficando com um deles, que conserva escondido sob as roupas. Borralheira e o príncipe devem aguardar que os emissários do rei-pai a encontrem, calce os sapatos, completando o par. Sapatos que são presente de uma mulher boa e poderosa (fada) e que pertencem apenas à heroína, de nada adiantando os truques das filhas da madrasta (cortar artelhos, calcanhar) para deles se apossarem.

As filhas da madrasta querem sangrar antes da hora e sobretudo querem sangrar com o que não lhes pertence, de direito (relação sexual ilícita, repressivamente punida pelo conto). Branca de Neve, cujo corpo não foi violentado pelo fiel servidor (não lhe arrancou o coração, a virgindade, substituindo-o pelo de uma corça) será vítima da gula e da sedução da madrasta-bruxa, permanecendo imóvel num caixão de cristal (seus órgãos sexuais) com a maçã atravessada na garganta, sem poder engoli-la.
Além da simbologia religiosa em torno da tentação pelo fruto proibido (o sexo), o vermelho trazido pela bruxa liga-se também à simbologia medieval onde as bruxas fabricam filtros de amor usando esperma e sangue menstrual, bruxaria que indica não só a puberdade de Branca, mas também a necessidade de expeli-la para poder reviver. Despertará por um descuido dos anões vigilantes – a casinha na floresta, os pequenos seres trabalhadores que penetram em túneis escuros no fundo da terra (que na simbologia sexual é imagem da mãe fértil), um “Mestre”, um a ter sono permanente, outro a espirrar, outro não podendo falar, não foram proteção suficiente, a morte aparente tendo sido necessária para reter Branca. (Seria interessante observar a necrofilia do belo príncipe, pois pretende levar a morta em sua companhia.)
Bela Adormecida será vítima da curiosidade que a faz tocar num objeto proibido – o fuso, onde se fere (fluxo menstrual), mas sem ter culpa, visto que fora mantida na ignorância da maldição que sobre ela pesava. Sangrando antes da hora, adormece, devendo aguardar que um príncipe valente, enfrentando e vencendo provas, graças à espada mágica (também símbolo do órgão viril), venha salvá-la com um beijo. Em sua forma genital, o sexo aqui aparece de duas maneiras: prematuro e ferida mortal, no fuso; oportuno e vivificante, na espada.

De modo geral, heróis e heroínas são órfãos de pais (os heróis) ou de mãe (as heroínas), vítimas do ciúme de madrastas, padrastos ou irmãos e irmãs mais velhos. Essa armação tem uma finalidade. Graças a ela, preservam-se as imagens de pais, mães e irmãos bons (pai morto na guerra, mãe morta no parto, irmãos menores desamparados), enquanto a criança pode lidar livremente com as imagens más.

Há um desdobramento de cada membro da família em duas personagens, o que permite à criança realizar na fantasia a elaboração de uma experiência cotidiana e real, isto é, a da divisão de uma mesma pessoa em “boa” e “má”, e dos sentimentos de amor e ódio que também experimenta. Lutar contra padrastos, madrastas e seus filhos é mais fácil do que lutar com pai, mãe e irmãos.

Freqüentemente, os contos se estruturam de modo mais complexo. Em A Bela Adormecida, por exemplo, há várias figuras femininas superpostas: a mãe ausente; a fada má que maldiz a criança; a fada boa que substitui a morte pelo sono e promete um salvador; a velha fiandeira, desobediente, que conservou o fuso proibido; a menina curiosa e desprevenida que, andando por lugares desconhecidos e subindo por uma escada (símbolo da relação sexual) se fere e adormece, à espera da espada e do beijo.

A fada má pune o rei que a excluiu de um festa dedicada à fertilidade (o nascimento da princesa), a punição consistindo em decretar a morte da menina quando esta apresentar os sinais da fertilidade (maldição que simboliza o medo das meninas diante da menstruação e da alteração de seus corpos). A morte da menina decorre da curiosidade que a faz antecipar com um objeto errado (masturbação) a sexualidade.

A fada boa está encarregada de contrabalançar o equívoco (e o descuido masculino, que não suprimiu todos os fusos) colocando a menina na tranqüilidade sonolenta da espera e entregando a espada ao príncipe (que, portanto, recebe o objeto mágico de uma mulher, pois todos nascem de mulheres). O beijo final contrabalança o medo que a espada poderia provocar, pois é instrumento de guerra e morte (o beijo simboliza, em muitas culturas, não só amor e amizade, mas também um pacto ou uma aliança).


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